O Princípio Da Celeridade Processual E O Inquérito Policial: Reflexões A Partir De Franz Kafka E A Realidade Brasileira

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“Alguém certamente havia caluniado Josef K.”

É com essa frase que se inicia a obra O Processo, de Franz Kafka. O personagem Josef K. tem sua casa invadida por dois guardas, ato justificado por um procedimento aberto contra ele.

Surpreendido pela abordagem inquisitiva, K. se vê obrigado a empreender esforços para compreender o processo que corre contra si: do que se trata, quem o processou e como se defender. Objetivos aparentemente simples para um processo que deveria garantir os princípios acusatórios.

Ao longo da narrativa, o personagem enfrenta um processo com claras características inquisitivas, no qual, apesar de todos os esforços, não consegue assegurar garantias mínimas para uma defesa digna. A falta de transparência e o autoritarismo do enredo nos trazem uma lição trivial, porém necessária: qualquer procedimento deve garantir o mínimo de dignidade àquele que é alvo de uma acusação ou investigação.

Guardadas as devidas proporções, e embora a legislação penal tenha evoluído no sentido de garantir direitos de defesa, ainda hoje se observam práticas inquisitivas semelhantes às retratadas na obra, especialmente no que diz respeito à duração, muitas vezes irrazoável, de inquéritos policiais. Isso coloca em xeque a garantia do investigado de ter o procedimento concluído com celeridade. Ter um inquérito aberto contra si coloca qualquer indivíduo em uma situação de constante incômodo, tirando-lhe o sossego devido ao medo dos riscos inerentes ao procedimento.

Nas palavras de Beccaria, é fundamental que o acusado tenha meios e tempo para sua defesa, e que esse tempo seja o mais curto possível, pois quanto mais próxima a punição estiver do delito, mais justa ela será. [1] Nesse sentido, Aury Lopes Júnior também adverte:

“O Direito Penal e o processo penal são provas inequívocas de que o Estado-Penitência (usando a expressão de Loïc Wacquant) já tomou, ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada a retirar, apossa-se do tempo. […] Quando a duração de um processo supera o limite da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível. E esse apossamento ilegal ocorre ainda que não exista uma prisão cautelar, pois o processo em si mesmo é uma pena.” [2]

Assim, se o tempo estabelecido em uma condenação é o protagonista da punição, o tempo de duração de um inquérito é o protagonista da angústia do indivíduo. Daí a necessidade de estabelecer prazos razoáveis para a conclusão do procedimento, evitando que ele se estenda indiscriminadamente.

Para dar efetividade ao art. 8º do Pacto de San José da Costa Rica, que trata do princípio da celeridade processual, a Constituição brasileira incorporou o princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, inciso LXXVIII.

Nas palavras de Guilherme de Sousa Nucci, esse princípio estabelece que o Estado deve desenvolver sua atividade no menor tempo possível, proporcionando uma resposta ao delito e poupando o tempo das partes. Além disso, tanto no âmbito judicial quanto no administrativo, é assegurada a razoável duração do processo. [3]

Vale destacar que, embora a previsão constitucional mencione a “razoável duração do processo”, a doutrina entende de forma pacífica que essa garantia é mais ampla, aplicando-se também ao inquérito policial, conforme afirma Gustavo Badaró. [4]

Essa interpretação é corroborada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já decidiu:

“É aplicável o postulado da duração razoável do processo, previsto no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, no âmbito dos inquéritos policiais. […] O excesso de prazo na conclusão do inquérito policial poderá ser reconhecido caso venha a ser demonstrado que as investigações se prolongam de forma desarrazoada, sem que a complexidade dos fatos sob apuração justifique tal morosidade.” (HC n. 444.293/DF, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/12/2019, DJe 13/12/2019) [5]

Portanto, esse princípio, aplicável também aos inquéritos policiais, é uma garantia não apenas para a vítima ou para a sociedade, que tem interesse na resolução da lide criminal, mas também para o investigado, que, durante o procedimento, sofre com o estigma social e tem suas garantias individuais colocadas à prova, esteja ele preso ou em liberdade.

Josef K., ao ter sua casa invadida, teria o direito básico de ser informado sobre a acusação que pesa contra ele. No entanto, ele passa boa parte da história tentando descobrir o conteúdo das acusações. Esse cenário reflete uma realidade ainda presente: embora o princípio constitucional da celeridade esteja previsto na legislação infraconstitucional, como no art. 10 do Código de Processo Penal (CPP), que estabelece prazos para a duração dos inquéritos, na prática, esses prazos nem sempre são respeitados.

Apesar do princípio, da lei, da jurisprudência e da doutrina, há desafios práticos para a efetivação da celeridade, especialmente devido à falta de efetivo estatal para conduzir as investigações de forma ágil. Na obra de Kafka, é comum a desorganização do aparato estatal e a falta de preparo dos servidores para fornecer informações básicas. Um dos primeiros desafios do personagem é justamente enfrentar as amarras burocráticas, tão familiares no mundo real.

A realidade não é muito diferente. As polícias judiciárias, responsáveis pela elucidação dos crimes, enfrentam problemas como a falta de efetivo e a complexidade dos casos, o que muitas vezes justifica a dilação dos prazos dos inquéritos. Isso coloca em xeque a conclusão célere dos procedimentos.

É verdade que a legislação permite a dilação dos prazos, conforme o art. 10, § 3º do CPP, em casos de fatos de difícil elucidação ou quando o indiciado está solto. No entanto, a dilação deve ser exceção, não regra. Como observa Guilherme de Sousa Nucci, embora o prazo legal para a conclusão do inquérito seja de 30 dias, o acúmulo de serviços muitas vezes torna inviável o cumprimento desse prazo, especialmente quando o indiciado está solto. [6]

Nesse contexto, estabelece-se um conflito entre os prazos legais e a realidade estrutural das polícias investigativas. Na prática, o que se vê são inquéritos que se prolongam indefinidamente, perpetuando o estigma social e a angústia do investigado.

Retomando o paralelo com a obra de Kafka, o personagem principal sofre com um Estado ineficiente, que lhe causa angústia ao negar-lhe informações sobre o procedimento que corre contra ele. Na realidade, investigados e sociedade sofrem de maneira semelhante, vendo inquéritos se arrastarem ao longo do tempo. Para o investigado, a punição começa já nessa fase.

A situação retratada mostra que, embora o Estado seja dotado de princípios dignos de elogio, suas limitações estruturais acabam por minar o que há de positivo. De que adianta o princípio da celeridade se as dilações de prazo se tornam a regra?

Assim, a ineficiência do Estado, como causadora da angústia do indivíduo que tem uma investigação em curso contra si, retratada na obra de Kafka, também se reflete na realidade, evidenciando características de um Estado inquisitivo.

 

Referências:

[1] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2015. p. 49.
[2] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 86.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 173.
[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 88.
[5] HC n. 444.293/DF, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/12/2019, DJe 13/12/2019.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 355.

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